O Grimório de Elek

Saudações amigos bruxos. As páginas que seguem são reflexões do Bruxo e Sacerdote do Coven Triluna, Elek Ophelus. Convido vocês a unirem-se a mim nessa jornada de auto-conhecimento e equilíbrio com nossa Mãe-Terra. Aqui divido singelos saberes adquiridos através de estudos acerca da Arte e dos fundamentos da Religião da Grande Mãe. Sejam bem - vindos! Blessed be!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A Espada que Abate o Cálice: O Mito Arturiano e seus Desdobramentos Contemporâneos


     
     Encarado como discurso, fala ou narrativa, o mito é geralmente compreendido como uma forma das sociedades expressarem de forma anímica suas dúvidas, anseios e contradições. É ainda muitas vezes apontado como um esforço interpretativo do mundo ou como uma alternativa para uma reflexão sobre os fenômenos da vida e da morte, assim como da relação do homem com seus semelhantes e com o universo que o cerca. A narrativa mítica assume um caráter alegórico, pois ainda que seu enredo esteja vinculado ao maravilhoso e a fantasia, ela deixa entrever sob os véus de sobreposições imagéticas, fatos que se relacionam com a natureza e o pensamento histórico e filosófico.
            Podemos dizer então que o mito traz em si um caráter hermético que desafia seu interlocutor, tal qual a esfinge a Édipo, a decifrá-lo. As histórias que são tramadas formam uma complexa teia onde os diversos caminhos se cruzam e entrecruzam tecendo imagens muitas vezes intransponíveis. A investigação e a compreensão do fenômeno simbólico em narrativas míticas podem ser comparadas ao trabalho de um domador de cavalos. O pesquisador, no entanto, não tentará domar um potro, mas sim o alado Pégaso que, com suas asas grandiosas, torna-se fugidio, obrigando o domador a segui-lo por regiões pantanosas na esperança de laçar-lhe o pescoço, para então, com os olhos escancarados, vislumbrar por alguns segundos o mundo lá no alto, antes de tombar no chão e afundar no pântano novamente.
            A narrativa mítica está ligada há um tempo no qual a cultura estava centrada na oralidade e a palavra estava vinculada a um conceito mágico-religioso. A concepção da mitologia em si não pode então ser distanciada da compreensão religiosa e ritualística dos povos ditos primitivos. Segundo o autor Fernand Robert em seu livro A religião grega, o mito surge freqüentemente para explicar um determinado rito, pois a religião, para os antigos, não está concentrada na palavra, mas sim em determinadas ações que a palavra gera – o que transforma o conceito de palavra em um ato físico que manifesta algo no universo. Acredito que a proposta do autor de estudar o rito como a verdadeira origem do mito é seguramente uma das melhores formas de compreendermos o fenômeno mitológico e sua transição após a ascensão da escrita e a laicização da palavra mágico-religiosa.
            Mas voltemos ao nosso cavalo alado. Para compreendermos o mito seria sensato recorrer ao estudo da ritualística dos povos e à comparação das diversas histórias que desses provêm, pois então constataríamos o que mitólogos universalistas como Joseph Campbell e Mircea Eliade têm afirmado, que os mitos revelam o funcionamento interno do psiquismo humano ou, como afirma David Leeming,

(...) os mitos são ao mesmo tempo sonhos coletivos culturais e universais, que muito podem nos dizer não apenas sobre quem e o que são as culturas, mas sobre quem e o que somos como espécie. (LEEMING, 2003, p. 10)

            Para o mitólogo Joseph Campbell a função da mitologia sempre foi a de fornecer os símbolos que auxiliam o indivíduo humano a compreender o mundo que o cerca e o levar a uma jornada de evolução, opondo-se a todo o tipo de ilustração que o possa levar à regressão, ou à negação de sua essência humana. Campbell diz que o mito é

(...) a revelação de uma plenitude de silêncio no interior e em torno de todo o átomo da existência; é algo que se dirige a mente e o coração e por meio de figurações cuja forma vem do plano profundo, para aquele mistério último que preenche e cerca todas as existências. (CAMPBELL, 2003, pg. 263).


            Com o advento da escrita o mito perde suas características orais, mas não sua força simbólica, e, os fenômenos cíclicos de uma sociedade fechada e voltada para a tradição e a apreensão do mundo pela oralidade dão lugar ao logos e em seguida aos germens dos questionamentos estéticos que desembocam nas sociedades moderna e contemporânea. Mas será que em um mundo de culturas partidas e sociedades estratificadas como o que vivemos, no qual a coisificação do homem se tornou um clichê, um lugar-comum, ainda há espaço para o mito? Será que em um mundo que gira em torno dos avanços tecnológicos em detrimento dos avanços sociais ainda encontramos um espaço para a discussão da simbologia de uma imagem? Acredito que a resposta para tais questionamentos encontra-se no âmago da própria sociedade que os gerou. O homem de tantos avanços percebeu através dos últimos séculos que não está no limbo que o leva para além do bem e do mal, e que o excesso de racionalismo o levou para um lado só da balança causando uma série de desequilíbrios na formação de sua integralidade enquanto ser humano. Roberto Calasso acredita que
(...) podemos entender as histórias míticas, mesmo quando chegam até nós fragmentadas e mutiladas, soam familiares e diferentes de todas as outras histórias. Aquelas histórias são uma paisagem, são a nossa paisagem, simulacros hostis e convidativos que ninguém inventou, que continuamos a encontrar, que de nós esperam só ser reconhecidos. Assim, agora podemos confessar-nos o que era, o que é aquele antigo terror que as fábulas continuam a incutir. Não é nada diferente do terror que é o primeiro de todos: o terror do mundo, o terror perante seu enigma mudo, enganador, opressivo.Terror diante deste lugar de metamorfose perene, da epifania, que inclui primeiro a nossa mente, onde assistimos sem tréguas à dança dos simulacros. (CALASSO, Os 49 Degraus)
O mito arturiano está atrelado a tais concepções acerca do fenômeno mítico desde seu primeiro aparecimento em Historia Brittonum escrita por Nennius no século IX e por seus desdobramentos nos séculos que seguem através do Romanzo Medieval. O Romanzo Medieval ou Romance de Cavalaria sofreu uma série de transformações que acabaram por sufocar sua pluralidade de vozes narrativas - uma característica até então comum a tal gênero literário - transformando essa multiplicidade de eixos em uma única voz, com a posterior tradução, assimilação e transposição para o gênero da prosa dos mesmos pelos monges católicos durante o medievo. As Lendas Arturianas compreendem um período histórico bastante extenso, atingindo grande popularidade, inclusive para além das fronteiras britânicas, quando da publicação de A História dos Reis Britânicos de Geoffrey de Monmouth em 1136.
O locus de enunciação no mito Arturiano passa por um processo de transferência de um contexto pagão, ou pré-cristão, para um cenário impregnado dos valores estéticos e morais do cristianismo. Cabe aqui retomar a raiz do termo pagão, que em sua origem remete ao vocábulo latino pagannus, o homem do campo, e a paganálias, as festas rurais realizadas nas aldeias em honra a divindade Ceres. Ambos os conceitos distanciam-se da definição de pagão como aquele indivíduo não batizado. Contudo, o conjunto de narrativas geradas pelo ciclo de mitos alusivos ao Rei Artur estabelece uma teia complexa em que múltiplos narradores têm concebido, através de uma apropriação de tal discurso mítico, discursos contemporâneos possíveis.
Tais discursos estabelecem aproximações e distanciamentos perante a imagem arquetípica de Arthur como o grande rei messiânico, que tal como a figura do cristo retornará dos mortos para salvar seu povo escolhido. Jacques Le Goff define a imagem de Arthur como

(...) mais do que um guerreiro e um cavaleiro, Arthur é a encarnação mítica do líder por excelência das sociedades políticas medievais.

Escritores coevos como Marion Zimmer Bradley, autora de As Brumas de Avalon e Bernard Cornwell, autor da trilogia intitulada As Crônicas de Arthur, revisitaram as lendas Arturianas abrindo brechas no tecido discursivo que havia cristalizado a imagem de um Artur puritano e cristão, apoiado por seus fiéis cavaleiros, num cerrado regime antitético em que a mulher ocupava três papéis possíveis – a virginal donzela que aguarda o retorno de seu amado, a esposa infiel que traz a desonra para todos do clã, ou ainda a figura da feiticeira diabólica que pretende tomar o poder para si. Bradley e Cornwell, fomentados por diferentes ideologias, apropriam-se de tais mitos traçando dois instigantes retratos da relação da mulher e do homem medieval com a terra e o divino, tecendo discursos que se apresentam como práticas de significação, depositadas em ideologias dessemelhantes que repousam sua atenção sobre um mesmo problema: a destruição massiva das crenças pagãs do homem rural pela religião cristã.
É importante também ressaltar como as obras Bradley e Cornwell apresentam as relações sociais imbricadas a um conceito de divino que está fortemente ligado a ciclos agrários, e que, portanto adotam uma postura de respeito e veneração pela natureza. A ética das personagens e o relacionamento das mesmas com a Terra e as outras espécies estão condicionados a modelos religiosos que tinham uma visão contrapesada entre suas deidades, promovendo um equilíbrio entre o que se convencionou chamar, especialmente no lastro teórico dos estudos do imaginário, um princípio gerador masculino e feminino. O esforço interpretativo e artístico dos autores acaba por compor duas ficções distintas estética e ideologicamente, mas que trazem em seu bojo uma denúncia semelhante – depositando a figura de um Deus patriarcal fora da natureza proporcionou-se uma lógica que justificasse o saque desenfreado aos recursos da Terra, e o sobrepujamento do homem sobre as demais espécies. O homem contemporâneo percebe somente agora, quando os saldos da poluição e do aniquilamento ecológico tornaram-se graves o suficiente para ameaçarem até mesmo a adaptação urbana da humanidade, a importância do equilíbrio ecológico e a interdependência de todas as formas de vida.
O nosso relacionamento com a Terra e todas as demais espécies que dividem este espaço conosco tem sido condicionados pelos modelos religiosos, e estes por motivos míticos atrelados a rituais que promovem simbologias de poder diante dos homens e diante do mundo.  Os deuses pagãos estabelecem na obra de Bradley e Cornwell um modelo de divindade anímica e imanente a natureza, que muito se aproxima das sociedades indígenas e xamãnicas, e que, portanto não deposita suas divindades em um além mundo, mas sim no mundo natural. Assim a ficção de tais escritores apropria-se do mito arturiano dando uma nova verve ao mesmo, estabelecendo um diálogo entre os modelos religiosos vigentes e o relacionamento dos mesmos com o planeta e as espécies que o coabitam com o homem. As obras de Bradley e Cornwell excitam uma discussão que se faz urgente, costurando uma relação entre os saberes literário, mítico, religioso e ambiental apontando questionamentos que provoquem uma reflexão profícua sobre a relação entre mito, literatura e sociedade e a apropriação dos mitos por discursos ideologicamente engajados e como tais discursos provocam uma avaliação acerca da problemática ambiental e do futuro do homem na Terra.

 

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